sexta-feira, setembro 10, 2004

(História) Um Homem Rico - II

Sabes meu querido, eu também adoro a nossa casa. Adoro o raio do candeeiro em cima da mesa onde jantamos e que de tantos puxões já está quase a cair do tecto.

Adoro o nosso quarto com a cama grande (é só um estrado onde pousa o colchão) e a desarrumação propositada das almofadas e pufs. Adoro a sua luz de fim de tarde, o tal luscofusco... claro que nunca o mostraremos a ninguém. É só nosso. É lá que nos trocamos.

Às vezes parece-me que transpareces alguma preocupação quando falas no dinheiro que não temos. Não sabes que não poderia ser mais feliz? Não precisamos de outra televisão e a aparelhagem ainda toca... bem, talvez precisássemos de outro fogão... sabes que eu prefiro o gás... passo a vida a queimar-me nos bicos eléctricos, e detesto apanhar choques.

Ah... hoje, quando fui à padaria, roubei do canteiro da rua uns pés de sardinheira... são aquelas plantinhas que dão flores muito bonitas... a nossa varandinha vai ficar mais simpática.

Nunca te disse, mas não gostei lá muito de ir ao casino ver pessoas... teria preferido virar-me para o outro lado e ter ficado contigo abraçadinha a ver o mar revolto. Mas foi divertido à mesma... lembras-te daquela loura de cabelo descolorado, cheia de base na cara, que quase caiu quando os tacões tão finos ficaram entalados na calçada... foi tão engraçado... teve que se descalçar e arrancar de lá o sapato... tentava a todo o custo manter a sua postura elegante, vertical ... com aquela verticalidade que dá jeito, desde que se lembrem que a gravidade pode fazer escorregar as medalhas que gostam tanto de ostentar. Quando lhes perguntam o que fazem na vida, respondem com orgulho: “sou engenheiro”...

Pobres, não somos nós, meu querido.

Não te preocupes meu amor. Vou conseguir arranjar emprego brevemente e nessa altura vai tudo ser melhor. Fica comigo amanhã. Fica. Também eu tenho medo de te perder. Deus terá concerteza os seus planos para nós, e sabe que eu sou forte, mas sabe também que prefiro morrer contigo. Não vou suportar os dias sabendo que não te terei mais.

Não quero estar à espera de morrer, agarrada à vida apenas porque sou este conjunto de células que teimam em cooperar para proteger a sua sobrevivência. Mas quero, quanto mais não seja, que o vulto do homem à cabeceira da cama nessa altura não me seja indiferente. Nem quero que seja apenas um espaço ocupado por hábito ou por falta de alternativa.

A única coisa que levarei comigo, é a lembrança de como fui amada e amei. Sou tão feliz que chego a ter medo que nesta felicidade incauta tenha falhado uma premonição.

Mas porque havemos de pensar nisto agora? O nosso amor é um milagre irrecusável. Para os dois. Agora estamos aqui e sou a mulher mais feliz do mundo. Tenho tudo. Apropriei-me da felicidade. Agora é tudo meu – as tuas camisas, as tuas meias, as tuas cuecas, o teu cabelo, os teus lábios, os teus sussurros, a tua voz mansa, o teu amor.

Adoro os nossos passeios (naquelas horas digestivas) pela Foz, ou mesmo pelo Norteshoping. Adoro passar a mão pelo teu cabelo em público. Devagar e contemplando esse cabelo espesso e revolto por entre os dedos.

Adoro a confiança com que me olhas quando eu ando pela casa agarrada a ti, e tua paciência quando insisto em pôr-me, descalça, em cima dos teus pés.

Sou tua. Entreguei-me sem medo de ter medo, abri-me. Rio-me feliz enquanto te observo a esvaziar-me de tudo o que tenho e do que nem imaginava que tinha. Tão curiosa como tu, pelo que vamos arrancando.

Espero que o meu amor te chegue. É tudo quanto possuo para te compensar do que não tiveste por mim.

Logo, vou pedir-te para tocares para mim enquanto faço o jantar. Quando chegares, vou ter a banheira à tua espera... cheiinha de espuma. Não, não são sais de banho... descobri que o shampô faz uma espuma do caraças.

Já sinto um aperto de fome por ti. Vou matar as horas que ainda faltam para te ter nos meus braços.

Não, pobres não somos nós, meu querido.

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